terça-feira, 17 de dezembro de 2013

MÃOS SUJAS DE INDIFERENÇA

Eu a matei.
Aos poucos.
Ela nem percebeu.
Na verdade, nem eu percebia.
Só ficou claro quando já era tarde demais.
Quando já não respirava.
Quando eu prendi a respiração.
E aquele momento se dilatou.
Descaso,
Ressentimento
E displicência.
Quem sobrevive a isso?

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

CAIXINHA DE RECORDAÇÕES

Ela sabia que não devia mais sofrer assim, mas insistia. Sempre mexendo nas gavetas a procura do álbum para poder olhar só mais uma vez aquele sorriso pelo qual era apaixonada. “É a última vez”, dizia ela, mas nunca era, e sabia que não.
Do fundo da gaveta retirou a “Caixinha de Recordações”. Fora esse o nome que ele dera à caixa ao presenteá-la no Dia dos Namorados, o primeiro Dia dos Namorados deles.
“Nossa, isso já faz tanto tempo!”, sempre dizia isso ao lembrar que já fazia anos que ganhara aquela caixinha, e ela [a caixa], cumprira com louvor o seu papel, pois guardava as mais belas recordações deles.
Na verdade, a caixa era apenas uma ponte para a sua memória, pois nela está encerrado bilhetes com juras de amor eterno, alguns brincos e anéis, fotografias [as mais “raras”, que não poderiam ser colocadas no álbum], cartas e outros objetos que, para ela, tem valor sentimental.

Todas as tardes, como num ritual, ela olhava o álbum “pela última vez”, depois abria com muito cuidado a caixinha, sempre no mesmo horário. Era a hora que ele, estivesse onde estivesse, ligava para ela para dizer “Eu te amo pra sempre!”.
E ao abrir aquela caixa, cofre de coisas maravilhosas, fiel dos seus segredos, ela era inundada por uma sensação de paz infinita e lembranças adoráveis. Lembranças que chegavam de uma em uma, tornando o seu dia melhor.

Namoraram anos, depois casaram, tiveram lindos filhos. Diziam que eles formavam um belo casal, o mais apaixonado que existia, e sem dúvida eram. Tinham uma cumplicidade ímpar, um entendia o que o outro desejava apenas com o olhar.
Mas, um dia, ele a deixou. Todos pensaram que ela não fosse suportar, até ela mesma pensou isso. No entanto, com a ajuda do álbum e de sua caixinha, sobreviveu. Porém sempre sofre ao perceber que essa felicidade não retornará.
Depois da partida – ela sempre diz “partida”, jamais morte – do seu amado, ela perdeu muito do vigor, da beleza juvenil, do brilho no olhar. Costumava dizer que há muito já não vivia, apenas existia.

Era chegada a hora de se despedir das lembranças e voltar para o cruel mundo real. Um mundo que ela dizia já não fazer parte, e às vezes, chegava a desejar com ansiedade a sua “partida” também, pois voltaria a encontrar o seu amor, e só assim seria feliz novamente.
Fechou o álbum, olhando mais uma vez o sorriso dele, pegou a caixinha com tanto cuidado que parecia levar uma criança em seus braços. Sussurrou dentro da caixa um “Eu também te amo pra sempre!”, e fechou a tampa devagar, fechando ali, a sua felicidade.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

CÍRCULO VICIOSO

Preciso de metas. Preciso de verbas. Preciso dela!
Por que “precisar dela” se tenho a mim?
Se tenho a mim, por que precisar do outro?
No outro eu posso encontrar a mim mesmo, que é justamente quem eu mais preciso no momento!
Momento...
Somos feitos de vários “momentos”.
E em qual momento devo agir?
Agir, ação. Sem noção. Sem noção, é como estou! Onde estou?
Estar, ficar, fincar, fincar as raízes e não mais sair.
Sem saída, ficar.
Estagnar.
Não viver a vida, apenas existir nesta vida!
Tédio! Tem remédio? Claro! Sair!
Sair, fluir, fugir, ir e não olhar. Olhar. Que olhar!
Olhar apaixonado, olhar desesperado, olhar triste. Triste. Triste despedida, triste partida. Partir. Preciso partir.
Preciso de metas. Preciso de verbas. Preciso dela!

terça-feira, 8 de outubro de 2013

OUVIR

Só o que ele quer é ser ouvido. Não precisa nem ser compreendido, apenas ouvido.
Bastava alguém parar para ouvi-lo [de forma sincera] que, com certeza, ele se sentiria melhor.
Até já tentou conversar com o espelho, mas se sentiu idiota ao perceber que a sua voz se perdia no vazio.
“Pelo menos, não é tão diferente quanto conversar com certas pessoas.” – Justificou, numa tentativa de diminuir o constrangimento que sentiu.
Fechado em seu mundo, em uma espécie de “autismo opcional”, não fala de si para os outros. Porém, nunca na vida, desejara tanto um ouvinte, como desejava agora. Mas tinha que ser alguém despido de preconceitos, e sem ser metido a sabe-tudo. Afinal, ele precisava apenas desabafar, não queria ter que ouvir qual era a “fórmula” para resolver seus problemas. Apenas queria contar sobre toda aquela dor que sentia, e faltava alguém para ouvir.
Um ouvinte sincero – era isso que ele buscava – para contar tudo sem se preocupar em medir palavras. Precisava da presença de verdade do outro, para poder contar a sua verdade.
Seria, então, o momento em que teriam que abandonar as máscaras e os papéis. Deixariam de representar, pois só assim, existiria a partilha verdadeira.
A troca, não de palavras, mas de sinceridade. A real intenção de ser útil ao outro, numa doação total.
Porém, ele ainda não encontrou esse ouvinte, e continua sua busca.
Pois só o que ele quer é ser ouvido.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

HOMEM DE LATA

- A fim de não-mais-amar, peço-lhe que me arranque o coração.
- E o cérebro?
- Ele fica.
- “Razão acima da emoção”, não é?
- Não, doutor... Só não quero deixar de pensar nela.

- O bisturi, enfermeira.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

SORTE NA MANEIRA DE PISAR!

Com os pés sensíveis, tenho dificuldade em pisar com firmeza. A firmeza dos que sabem aonde vão.
Pés alvos, sem marcas, machucados ou “rachaduras”... O que me faz perceber que tenho muito para andar e aprender. Pois essas marcas – que não tenho – mostram o quanto um pé “viveu”. Um pé que subiu e desceu ladeiras, correu pelas campinas e praias, sofreu com calçados apertados, sentindo dores terríveis, mas suportou até que lhe tirasse o calçado algoz e gozou a liberdade tão sonhada.
É um pé que descobriu o quanto a vida é dura, que sabe que para aprender é necessário se jogar no desconhecido, e se dobrar diante de situações complicadas, porém, jamais se jogar por terra e desistir.
Por não saber pisar, sofro com os obstáculos que me são impostos, refugio-me nos braços de meu pai e peço que me carregue pelo caminho pedregoso (e tortuoso) da vida, atrasando assim, meu aprendizado na maneira de pisar.
Procurando incansavelmente por um modo certo de pisar, o meu modo, vejo que não sou o único, pois basta olhar para o lado e percebo que muitas outras pessoas estão nessa busca árdua, onde pisar firme é necessário.
Mas vou seguir o caminho que meus pés escolherem, desbravando lugares que nunca imaginei pisar, encarando o mundo e a vida.Vou acostumá-los com todos os tipos de terreno, a conviver com os calos, os cortes e perfurações.

Mas, ao final da jornada, os colocarei em água morna para que relaxem e finalmente possam descansar sabendo que viveram tudo o que um pé precisa viver.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

AMOR GRANDE

- Você me ama?
- Sim.
- Quanto?
- Quanto o quê?
- Quanto você me ama, ora!
- Oxe!! E tem que medir, é?
- Tem.
- Desde quando?
- Não sei. Mas eu quero saber o quanto você me ama.
- Pergunta doida... Te amo muito. Pronto!
- Muito, quanto?
- Essa conversa ‘tá me aborrecendo.
- ‘Tá vendo? Você não me ama mais.
- Mas é claro que eu amo.
- Quanto?
- Te amo grande, bem grande! [Assim, ó.]
- Eu sabia!

terça-feira, 3 de setembro de 2013

PRA SEMPRE

- Me deu uma vontade...
- De quê?
- De te amar pra sempre.
- Hum...
- Como assim, “hum”?
- Ah, sei lá. Não quero, eu acho.
- Não quer que eu te ame pra sempre?
- É. Quer dizer, não quero que diga isso.
- Por quê?
- Ah, sei lá.
- “Ah, sei lá. Ah, sei lá”. Diz outra coisa, seu lerdo.
- Calma, moço. ‘Tá nervoso, hein?
- ‘Tou sim. Eu aqui todo romântico, e tu aí, todo indiferente.
- Epa! Indiferente, não. Apenas não gosto de juras de amor eterno. Prefiro que você me ame hoje, com todo amor que tiver.
- E amanhã?
- Amanhã a gente vê. Deixa chegar lá, pra gente ver no que vai dar. Se você ainda estiver me amando, ótimo!
- E se não estiver?
- Aí, cada um segue seu caminho.
- Nossa, pensei que você fosse se preocupar mais. Que sofreria até.
- E quem disse que não?
- E precisa? ‘Tá aí todo indiferente.
- Já disse, não ‘tou indiferente, só não gosto de juras eternas. Eu sei que você 'tá tentando ser romântico, mas seja romântico hoje. É o que nós temos, o hoje.
- Coração gelado.
- Não, só não quero me iludir.
- Quer dizer que quer me deixar?
- Não falei isso. Deixa de bobagens e vem pra cá, vem. Vem me amar pra sempre, hoje.
- Posso?
- Claro! Eu quero te amar pra sempre, agora.
- Assim também é bom.
- Claro que é! Vem, seu bobo.
- Chato.
- Por quê?
- Porque você consegue me fazer sentir como um garoto inseguro e ainda consegue ser mais romântico que eu, “quero te amar pra sempre, agora”. heheheh...
- Vem deitar, vem.
- Vou.

E se amaram pra sempre, naquela noite.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

O [PRIMEIRO] ENCONTRO

Ele olhava de um lado para o outro. Estava bastante nervoso.
Usava um terno muito bonito, o cabelo penteado, a barba espessa estava impecavelmente bem aparada, muito cheiroso – como sempre – e muito nervoso também.
A esperava no mesmo restaurante e na mesma mesa. Deu uma gorjeta à banda para que tocasse uma música, a mesma que eles dois ouviram no primeiro encontro. Fazia anos que não se viam. Namoraram no início da juventude, mas tiveram que seguir caminhos diferentes e perderam contato.

Há alguns dias, ele estava em uma loja de chocolates. Olhava para os chocolates suíços, pois lembrava que eram os preferidos dela.
Uma senhora se aproximou e pegou alguns chocolates ao leite, ele olhou para o lado e a reconheceu.
“É ela!”, disse para si, ainda atordoado por ver ao seu lado, o seu grande amor.
Apesar da força do tempo se expressando através de suas rugas, ela conservava a mesma beleza de outrora.
Sem pensar direito, seguiu em sua direção.

- Você gostava dos amargos. - disse para ela.
- Desculpe-me, o senhor falou comigo?
- Você, pelo que me lembro - embora faça bastante tempo-, sempre gostou dos amargos.
- O senhor me conhece?!
- Sou eu, não se lembra mais? Estou tão velho e feio assim, é?

Ela o fitou por alguns segundos. Quando olhou para aquele meio sorriso com dentes perfeitamente alinhados e brancos e um olhar intenso, começou a recordar. E vieram-lhe as mais belas lembranças de sua juventude, do quanto se encantava com aquele sorriso e o quanto aquele olhar mexia com ela. E, mesmo com os olhos emoldurados pelas rugas, ainda permaneciam intensos.

- É você! Nossa, eu não acredito! - disse surpresa.
- Pois é. Nem eu estou acreditando.

Deram um longo abraço. Se dependesse dele, jamais a soltaria, não queria que fosse embora como da última vez. Fazia força para não chorar, mas estava em um vendaval de sentimentos, e ela como sempre, firme. Não parecia estar sentindo nada além da alegria em revê-lo.
Porém, isso era o que ele pensava, pois ela passou anos sofrendo por ter decido partir.

Terminado o longo abraço, permaneceram de mãos dadas, um olhando para o outro, sem trocar uma palavra. Precisavam de tempo para se acostumar com suas “novas” aparências. Depois desse silêncio necessário, resolveram quebrá-lo.

- Me diga como você está, além, de linda como sempre, é claro!
- Obrigada pelo elogio! Vou bem. Voltei pra cá há alguns meses e hoje resolvi comprar uns chocolates para os meus netos.
- Ah, neto! Então você casou!
- Pois é. Mas estou viúva há nove anos.
- Hum.
- E você, casou?
- Não, não casei.
- Nossa, é de admirar, pois sempre foi tão bonito, como é que nenhuma garota conseguiu laçar o seu coração?
- Porque ele já não estava mais comigo, já tinha uma dona que o levou com ela.

Ela baixou a cabeça, ficou um pouco desconcertada, tentou dizer algo, mas as palavras se perderam antes de chegar à boca. Quis dizer que foi preciso tomar aquela decisão, que mesmo o amando precisava seguir o seu próprio caminho, e que também sofreu com aquela decisão, mas não conseguiu dizer nada disso.

- Desculpe-me, é que está sendo tudo muito estranho para mim, e você sabe que sempre quero ter a última palavra, mas não foi minha intenção em constrangê-la.
- Tudo bem. Eu sei que tenho minha parcela de culpa na nossa história.
- “Nossa história”... “Nossa história”... É estranho ouvir isso assim, pois não partilho a minha história com alguém faz muito tempo. Na verdade, nunca partilhei com mais ninguém, desde que você partiu... Mas... Deixemos isso de lado, são coisas passadas e é lá que devem ficar. Olha, eu preciso ir, mas quero dizer que é um prazer imenso revê-la e, apesar das coisas que falei, não tive a real intenção em machucá-la, é só dor-de-cotovelo de um velho caduco.
- Não, tudo bem. Para mim, também foi muito bom te ver. E se você aceitar, eu gostaria de jantar com você qualquer dia desses.
- Claro, vou adorar! Pegue o meu número, e ligue quando quiser. Tchau!
- Vou ligar. Tchau!

***

Agora, lá estava ele, olhando de um lado para o outro, bastante nervoso.
Ela apareceu na entrada do restaurante. “Anda com a mesma leveza e beleza de quando era garota!”, pensou ele.
Em um lindo vestido verde, com um belo penteado e maquiagem. Como que flutuando, ela se aproxima.
Ele olhava para ela e via a jovem por quem fora perdidamente apaixonado, e ainda o era.
Aproximou-se da mesa, ele se levantou, beijou sua mão e puxou a cadeira para ela sentar.

- Demorei?
- Quarenta anos.
- Essa é a fala de uma novela.
- Nunca consegui ser original.
- Bobo.
- Esse sou eu.

Os dois ficaram conversando, rindo e relembrando todos os momentos maravilhosos que viveram juntos.
E a noite passou por eles como as noites de outrora, e vendo que já tinham que se despedir, eles ficaram em silêncio por um tempo, apenas gravando aquele momento e aproveitando tudo para torná-lo inesquecível e guardá-lo junto com todos os outros momentos bons.

- Bem, então é hora de dizer “tchau”.
- É.

Abraçaram-se com toda força que tinham. Os dois começaram a chorar e tentavam, naquele abraço, recuperar todo o tempo perdido.
Despediram-se, mas desta vez, foi um “até amanhã!” e não um “adeus!”.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

LIGAÇÃO

#Triiiiimmm#
O telefone toca. Corro para atendê-lo. Derrubo quase tudo que está no meu caminho. [#Triiiiimmm#] Eu sei que é ela pedindo desculpas. Pedindo pra voltar. Márcia é tão previsível. Sei que vai dizer que me ama e mais um monte de blablablá. Putz!! Nunca imaginei que a minha casa fosse assim tão grande. [#Triiiiiimmmm#] Atendo ofegante.

- Arf... Alô? Alô? Arf...
- Boa noite! Eu gosstaria de poder estar falando com o senhôr-r Rober-r-to Pompeu.
- Ah. É. Sou eu.
- Senhôr-r Rober-r-to, meu nome é Tatiana, estou falando em nome dos cartões de crédito Seu Crédito, e tenho uma ofer-r-ta imper-rdível para o senhôr-r.

Paro por alguns instantes, e me questiono por que essas meninas que oferecem cartão de crédito, falam tudo igual. Até parece pastor daquela igreja lá.

- Olha, obrigado, mas eu não tenho interesse.
- Mas senhôr-r Rober-r-to, o senhor ainda não ouviu a nossa propossta. E garanto ao senhôr-r que, ela é imper-rdível.
- Minha filha, eu não quero. E você ainda está ocupando o meu telefone. 'Tou esperando uma ligação importantíssima. Tchau!
- Mas sen...

#click#

Tive que desligar. Eles são insistentes demais. Volto para a cozinha. Tenho que terminar de fazer minha janta.
#triiiiimmm#
Caráca!!! Agora é ela!!! Eu sei que é. Consigo sentir isso. Márcia, Márcia. Eu sabia que ela não ia aguentar ficar muito tempo sem mim. [#triiiimmm#] Sei que tenho defeitos, mas também tenho ótimas qualidades. P#rra, eu não chego nunca a esse telefone?! Acho que vou comprar um sem fio.
Nota mental: Comprar um fone sem fio, ou então, emagrecer.
#triiiimmmmm...#

- Arf... Arf... Alô?
- Boa noite! Por favor, o senhor Roberto Pompeu.
- Sou eu. Mas se for cartão, eu já vou avisando, não quero.
- Não senhor. Não se trata de cartão. Aqui é da empresa de cobrança. É que o senhor está em débito com a loja de calçados Pé Descalço, e estou entrando em contato com o senhor para ter uma posição quanto à data de pagamento.
- Ahn, bem... Segunda-feira eu pago. Putz!! 'Cês aí trabalham até dia de domingo e uma hora dessas, é? Coitados.
- Pois é. Então, posso lançar essa informação no nosso sistema, senhor Roberto? Amanhã o senhor efetuará o pagamento, certo?
- Pode sim.
- Ok, então. Desde já, pedimos desculpas pelo incômodo e agradecemos a sua compreensão.
- Ok. Tchau!
- Tch...

#click#

Não tenho tempo para ouvir o seu “tchau”, meu amigo.
Volto para cozinha. Ela ainda não ligou, mas eu sei que vai ligar. Ah, se vai! Márcia, Márcia. Sempre foi dependente de mim, fico só imaginando o quanto deve estar sofrendo. Hmm... A comida está tão cheirosa. Acho que vou colocar mais um pouquinho de pimenta. Ela adorava esse prato, só não gostava da quantidade de pimenta que eu colocava. Hum. Acho que uma pitadinha disso também vai dar um “tchan” a mais. Melhor limpar essa mesa. O que será que ela está fazendo agora? Com certeza criando coragem pra me ligar. Márcia é tão previsível. Pronto, mesa limpa! Agora isso aqui vai para o fogão. Já, já, ela liga.
[#triiiiiiiiiimmmm...# #triiiiimmmmm...#] Ai, ai, ai... Agora é ela. Droga de panela! Ah, esquece, quando voltar, eu a apanho e limpo o chão. Nossa, será se eu já comentei que nunca tinha prestado atenção o quanto esta casa é grande? [#triiiiiimmm#] Já vai, já vai. Ô casa grande!! [#triiiiiimmm#]
Nota mental: Comprar um fone sem fio, ou então, emagrecer. Nota mental da Nota mental: Parar de falar sozinho. Ainda me internam por causa disso. [#triiiiiimmm#]
Atendo. Não falo, eu grito.

- ALÔÔ??
- Ai, não grita! Quem tá falando?
- Como assim, “quem tá falando”? Você quer falar com quem?
- Me passa aí pra Renata, vai.
- Caráca!!! 'Cê ligou errado, colega.
- E foi? Qual é o número aí?
- Com certeza não é o número que você deseja, pois aqui não tem nenhuma Renata.
- Mas você é muito bruto, viu?
- E você bem que poderia ir à merda!!
- Ah, vá...

#click#

Não tenho tempo para ouvir desaforos. Cozinha, aqui vou eu. Cacete!! Porra de tanta sujeira nesse chão!!! Vassoura, pá, e lá vamos nós. Ela tá demorando a ligar. Deve bem estar pensando que eu vou ligar pra ela. Rá! Não mesmo. Quem está com saudade é ela, e não eu. Ainda bem que ficou um pouquinho na panela. Dá pra aproveitar esse restinho. Opa! Já tá na hora de tirar a carne do forno. Hmmm... Se ela estivesse aqui, ia ficar com água na boca. Márcia, Márcia. Acho que vou preparar esse prato, quando ela voltar. Mas primeiro, ela terá que ligar pedindo desculpas. Coitadinha. Deve tá morrendo de saudades. Márcia, Márcia. Rá!
[#triiiiiimmm#] P*taquiupariu!!!
E lá vamos nós, novamente. Ela se deu mal. Resolveu me ligar justamente na hora que eu tô mal-humorado. [#triiiiiimmm#] Azar o dela. Afinal, poderia ter ligado antes. [#triiiiiimmm#] Ah, eu vou, mas vou sem pressa. [#triiiiiimmm...#]

- Oi?
- Oi, meu amor!!
- Ah, oi mamãe.
- Tudo bom, bebê?
- Sim, mamãe, 'tá tudo bem.
- E por que essa voz tão entediada? É por que tá falando comigo, é?
- Claro que não, mamãe.
- Você fica um tempão sem dar notícias, aí quando quero saber de você, fica assim, todo indiferente.
- Não, mamãe. Eu não 'tou indiferente.
- Claro que 'tá! É isso mesmo. Trate a sua mãe desse jeito. Depois que eu "me for”, queria voltar só pra ver a sua cara de remorso por não ter me amado enquanto podia.
- Mãe... É claro que amo a senhora. Só 'tou falando assim porque... Sei lá! Acho que 'tou cansado. É isso, 'tou cansado.
- Em pleno domingo? 'Cê não faz nada no domingo, como é que pode estar cansado?
- Ah, mãe, eu não sei. Apenas estou. Pronto.
- 'Tá bom, então. Vou te deixar descansar. Não quero ser um empecilho na sua vida. Não quero que chegue amanhã cansado no trabalho, e depois vai dizer que não pôde descansar porque a sua mãe não deixou. Tchau!
- Mãe, é clar...

#click#
#tu-tu-tu-tu-tu...# Putz!! Desligou na minha cara!!! Ai, ai... Amanhã ligo pra ela. Voltando à cozinha. [#triiiiiimmm#] Epa!! Ufa! Ainda bem que não cheguei a sair daqui. [#triiiiiimmm#]

- Pronto.
- A Renata, faz favor.
- Caceta!!!! Não tem nenhuma Renata aqui, seu retardado!!! Grrrr...

#click#

INFERNO!!! CARAMBA!!!! P*TAQUIUPARIUUU!!!! Vou arrancar a porra desse fio! Não quero mais saber de cacete de ligação nenhuma!! Ela que vá pro inferno!!! Nem que venha coberta de ouro, eu vou querer!! E eu sei que ela tá morrendo de saudade. POIS QUE MORRA!!!! QUE MORRA, MÁRCIA!!!


Enquanto isso, do outro lado da cidade, em uma boate.


- E aí Márcia, 'cê pensa em voltar pro Roberto?
- Nem morta, minha filha. 'Tou muito bem solteira. Aliás, 'tou muito bem, beijando várias bocas!! hahahaha...
- hahahahahaha... Mas falando sério... 'Cê não sente nem um pouquinho de saudade dele?
- Só quando preciso carregar algo pesado. rsrsrsrs...
- Como você é má! rsrsrsrs... Mas até que ele é um bonito.
- É verdade. Mas por falar em bonito, olha só, aqueles gatos dando mó bandeira pra gente. Vamos lá?
- Só se for agora.
- Hoje vou me esbaldar!!!

terça-feira, 13 de agosto de 2013

A LATA

Dois amigos – críticos de arte – caminham pelo Museu de Arte. Quando estão passando pelo corredor a caminho do próximo saguão se deparam com uma peça que os surpreende.

- Marcos, veja que peça fantástica!!
- Nossa, é realmente fantástica, Albert!
- Claro que não é de vanguarda, mas ela exala revolução! Pode não ser inovadora, mas arrisco dizer que é transformadora.
- Estou fascinado! O artista expressa-se claramente através da contracultura.
- Com certeza é prole do Dadaísmo. Há uma forte influência de Marcel Duchamp. Até podemos dizer que esta peça é uma parente distante da “Fonte”.
- Claro, claro! Mas, além de Marcel, me lembra também “Luxo” de Augusto de Campos. Você recorda?
- Sim, sim! É provável que “Luxo” tenha influenciado esta obra. Mas não podemos negar que está “impregnada” de Duchamp.
- Está impregnada de sujeira e mau cheiro. – diz um senhor que observava a conversa dos dois.
- O que você quer dizer com isso?! – pergunta Albert, surpreso.
- É! O que você quer dizer com isso?! – repete a pergunta, Marcos.
- Que isso está sujo e fede, ora!
- Você é crítico de qual revista??
- Eu? De nenhuma, senhor.
- E quem você pensa que é para criticar essa obra de arte? – pergunta Albert de forma teatral.
- Eu sou o zelador do museu, e tenho que recolher o lixo dessa lata aí que os senhores estão admirando, e depois, colocar a lata de volta no banheiro masculino. Se os senhores me derem licença... Isso. Obrigado!

terça-feira, 6 de agosto de 2013

DIA QUENTE

Dia quente! Na verdade, insuportavelmente quente! O escritório estava um verdadeiro caos, com pessoas andando de lá pra cá, com muito barulho e muito calor. Rafael que costumeiramente nunca se queixa de nada, estava impaciente, e só pensava em terminar seu serviço e ir embora para casa. Mas antes, planejava fazer algo.
Rafael tem trinta anos, é magro, alto e solteiro. Trabalha no escritório há dez anos, é um dos melhores funcionários, e há dez anos ele executa o serviço de Encarregado de Departamento, porém, somente há dois fora “promovido”. No entanto, a tal "promoção" fora de Auxiliar Administrativo para Assistente Administrativo, ou seja, é mais um funcionário que trabalha muito e ganha pouco. Como muitos, um escravo.
Porém hoje, está decidido a mudar o curso da sua vida no escritório. Disse para si mesmo que irá exigir algumas mudanças com relação à sua função e salário, e caso lhes neguem isso, pedirá demissão no mesmo instante. “Já decidi”, diz o tempo todo.
Seu chefe vem andando pelo corredor. “É agora” – pensou Rafael – “hoje ele não me escapa”. Rafael levanta-se.

- B-b-boa t-tarde, Sr. Macedo!

O senhor Macedo continuou seu caminho, sem parar, olhar, ou sequer responder. “Ele não percebeu que falei com ele. Deve ser por causa desse calor, ‘tá tirando a concentração de todo mundo!”, sentenciou.
Rafael senta-se e volta a fazer o seu trabalho que, há dez anos, faz tão bem quanto poucos.
“Já decidi. Amanhã ele não me escapa”, falou enquanto pegava uma pasta para abanar-se.

terça-feira, 30 de julho de 2013

INSÔNIA

É madrugada e eu queria dormir, mas estou sem sono.
Já contei elefantes [sim, eu preciso de algo mais pesado que carneirinhos], mas não sinto sono. E, olha, separei em manadas de duzentos – essa mania de organizar tudo! –, e cheguei em vinte e seis manadas.
Pelo visto, se depender de mim, os elefantes jamais entrarão em extinção.

O “tic-tac” do relógio é diretamente proporcional a minha insônia. Ou seja, quanto mais sem sono eu fico, mais alto é o volume do “tic-tac”. Sonzinho irritante.

Um pouquinho de luz invade o meu quarto, penso em brincar de fazer formas na parede com a sombra das minhas mãos. Mas me entedio rápido.

Ouço ao longe um conversa. Na verdade, é uma discussão. Ela está acusando ele de estar bêbado, e que, com certeza, “estava com as cachorras”.
Coitada. Trocada por cachorras.

Por falar em "cachorras", há um cachorro latindo em algum lugar. Um bêbado cantando. Provavelmente, caído em alguma calçada. O irritante apito do vigia da rua – se eu estivesse com sono, o teria perdido neste momento.

Converso com o meu travesseiro. É o meu melhor confessor. Escuta tudo que tenho pra falar e não conta pra ninguém e nem usa contra mim nada do que eu digo pra ele. É um bom amigo, e um sábio conselheiro. Mas já contei tudo e agora estou sem assunto. E sem sono.

Caramba! Ela realmente está com raiva dele. Foi um erro terrível ficar com as cachorras. A mulher não para de gritar. Não estou conseguindo sequer ouvir a voz dele. Se deu mal.

Putz! Já rodei a cama toda, e o danado desse sono não vem.

Ah, não! Os gatos resolveram namorar justamente no meu telhado. Shhh... FAÇAM SILÊNCIO, EU QUERO DORMIR!!!
Coitados... Como se fosse por culpa deles eu ainda estar acordado.

Resolvo refletir sobre como foi o meu dia. Hmm... Cheguei atrasado ao trabalho e levei a maior bronca do meu chefe. Aquela maldita cliente, mais uma vez, gritou comigo e desligou o telefone na minha cara [ela sempre faz isso]. O meu salário ainda está atrasado. Meu chefe me deu outra bronca por causa da maldita cliente. Ela ligou para ele e reclamou do meu atendimento [maldita!]. Não consegui ligar para a minha namorada [ela deve estar danada da vida!]. Pensando bem... é melhor não refletir sobre como foi o meu dia.

Cinco mil duzentos e um elefantes, cinco mil duzentos e dois elefantes, cinco mil duzentos e três elefantes, cinco mil duzentos e quatro elefantes, cinco mil...

terça-feira, 9 de julho de 2013

FINAL DE SEMANA - PARTE II

Oi, amor! Tudo bem? E aí, já 'tá com saudade de mim? É? Que bom!
Ô, amor, esse era o nosso final de semana. A gente já tinha tudo planejado. Você tinha que furar?! Toda vida aquele pessoal deixa pra te chamar em cima da hora. Deveria deixá-los na mão, sim! Acredito, sim. Sexta-feira à noite, podendo estar comigo, mas prefere trabalhar--
Ei, cê tá falando com quem?! Comigo? E por que sussurrou um “shh”? Espantando um gato?! Mas, meu amor, a gente mora no décimo quinto andar!! E o que um gato tá fazendo em nossa janela? Hum. Como é? Quem vai descobrir o quê? Falou sim, que eu ouvi! Claro que falou! Não acredito! É hoje que ela descobre isso?! Ai, vou perder!! Hã? Por que você me mandou calar a boca? Que história é essa de se empolgar, você nem gosta de novela! Bebê, cê 'tá muito estranho. Sei... Ô, amor, queria você aqui!! Eu deixei de sair com as meninas pra gente poder viajar. É, 'tou aqui, mas 'tou sem você, ora! Ah, mas sem você aqui, não tem graça!! Vem mesmo, né? Não vai furar mais uma vez, viu? E é bom vir mesmo, pois o próximo final de semana, vou sair com as meninas. Já furei demais com elas. 'Tou avisando! Ô, meu gatinho, 'cê é tão compreensível! 'Tá bom, vai, mas vem logo pra cá que 'tou morreeeeendo de saudade! Beijão! Também te amo! Tchau!

- Ótimo! Ele engoliu direitinho! Vai me dar o próximo final de semana. Eu disse que queria ficar um pouco com as minhas amigas, pois faz tempo que não saio com elas.

- Beleza!! Agora, vem namorar, vem. 'Cê já falou demais com esse panaca. Já 'tava ficando com ciúmes.

- 'Tava, era? Fica não, meu ursão... Sabe que só gosto de você.

- Mas tá casada é com ele.

- Esquece isso, e vem namorar. Ele vem pra cá no domingo à noite, então, vamos aproveitar hoje e amanhã.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

FINAL DE SEMANA - PARTE I

Alô? Ah, oi amor! Tudo bem, sim! Se eu já 'tou com saudade? Claro, né, picuchinha! 'Tou morrendo de saudade. Eu sei. Eu sei que esse era o nosso final de semana, que já tava tudo planejado, mas a companhia precisou de mim, e eu não poderia deixar o pessoal na mão, né?! Ô, minha buzunza... 'Cê sabe que a empresa para sem mim. Em plena sexta-feira à noite, e eu aqui, fazendo relatório, acredita? [shh... não faça barulho] Com quem eu 'tou falando? Com você, ora! E por que eu sussurrei um “shh”? Aaahhh, bom! É que eu tava espantando um gato que tava na janela.
Meu bebê, lógico que eu sei que a gente mora no décimo quinto andar! E o que um gato 'tá fazendo em nossa janela? Sei lá, esses bichos só podem ter pacto com o tinhoso, conseguem escalar tudo! [para, senão ela vai descobrir!] “Descobrir”? Eu não falei “descobrir”. Falei? Ah, falei, sim. É que eu 'tou assistindo a novela, e aquela moça bobinha vai descobrir que a megera quer o namorado dela. [não, eu não 'tou te chamando de megera. Faz o favor de ficar calada!] Que foi, amor? Não mandei você calar a boca, acho que me empolguei por causa da novela, só isso. Ué! E continuo não gostando de novela, mas sem você aqui fica tudo tão triste, aí liguei a TV só pra me distrair. [para de fazer cócegas!] Eu não 'tou estranho, só 'tou com saudade. Ô, gatinha, não fica assim. Eu sei que você deixou de sair com as suas amigas por causa da nossa viagem. Mas você 'tá aí, ué! Aproveite! [para de me lamber!) Vá passear na praia, pra tentar espairecer um pouco. Hum. Sei que sem mim fica sem graça, mas eu prometo que no domingo à noite chego aí, pra gente curtir o finalzinho do fim de semana. Como é? Você vai querer o próximo final de semana pra sair com as suas amigas? Hum. Ok! Tudo o que você quiser, minha gut-gut! Agora deixa eu desligar pra terminar minhas coisas. Beijão! Te amo! Tchau!

- Ótimo! Ela engoliu direitinho e ainda vai me dar o próximo final de semana! Disse que quer ficar um pouco com as amigas, pois faz tempo que não sai com as meninas.

- Finalmente! Mas cê ainda vai ter que me explicar essa história de “megera”. Ah, se vai.

- Óbvio que não tava falando de você, né, nhunhunga. Agora... vamos aproveitar que é melhor! Eba!

sexta-feira, 28 de junho de 2013

TURMA DA MÔNICA - LAÇOS

Minha edição - capa dura - de "Laços".


Quem já leu o blog de Vitor Cafaggi [Puny Parker] ou o blog da Lu Cafaggi [Los Pantozelos] não se surpreenderá com a qualidade gráfica e narrativa de "Turma da Mônica - Laços". Tudo é muito sutil, inteligente, delicado e lindo!
A história parte de uma ideia simples: Floquinho - o cachorro do Cebolinha - sumiu. E para encontrá-lo, o menino "vai embarcar com seus amigos em uma grande aventura com altas confusões". Se isso te lembrou "Sessão da Tarde", não foi mera coincidência, pois a semelhança com o filme "Conta Comigo" [Stand By Me, 1986] é bastante clara. Faz pensar em "Os Goonies" [The Goonies, 1985] e, sem contar a referência ao filme "Os Selvagens da Noite" [The Warriors, 1979].
Ah, e sem contar a referência a um personagem de uma certa "vila mexicana"!!
"Laços" bebe, e muito, do clima dos filmes dos Anos '80, mas sem fugir da sua própria mitologia. Lá, você verá personagens secundários; vestuário diferente do que estamos acostumados; vestuário de outras histórias; e até "explica" o motivo das crianças, com exceção do Cebolinha, não possuírem sapatos.

Vitor e Lu Cafaggi conseguem, com maestria, nos envolver na história. Prova disso é que rimos das já tão conhecidas confusões, "planos infalíveis" e coelhadas. E nos emocionamos com o primeiro encontro entre Cebolinha e Floquinho; a dor que ele sente quando seu cãozinho some; a partilha dos quatro amigos em volta da fogueira; e o primeiro encontro da turminha na creche.

Em "Astronauta - Magnetar" de Danilo Beyruth, o primeiro volume da série Graphic MSP, foi aprofundado a maior característica do Astronauta, a solidão. Em "Laços" a principal é a amizade. E lá, veremos a Amizade em seu estado mais puro. Primeiro, entre Cebolinha e Floquinho. Difícil não se encantar com o momento em que ele ganha seu cãozinho, quando os dois ainda eram bebês. E, segundo, pelos laços que unem Cebolinha, Cascão, Mônica e Magali. Mostrando que, mesmo com algumas diferenças e até briguinhas bobas, os Amigos sempre estão ali por nós quando precisamos.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

AMIGO FIEL

Você, meu Amigo, que sempre me escuta sem nunca me interromper. Que conhece meus segredos mais profundos e nunca os revelou. Sabe dos meus defeitos e os meus pecados – aqueles que não tenho coragem de falar em voz alta, pois me envergonho –, e me aceita assim mesmo.

Meu Amigo, você ouviu minhas gargalhadas quando encontrei meu Amor, e enxugou e absorveu minhas lágrimas quando esse mesmo Amor foi embora [é, eu sei que carrega em teu peito as manchas das minhas lágrimas que derramei sobre ti]. E tornou a ouvir meu sorriso bobo quando me apaixonei novamente.

Nas minhas noites insones, ouve minhas lamentações, meu resmungos, e nunca se aborrece quando, nos meus “dias de lua”, vou dormir sem te desejar “boa noite!”. E se estou alegre ou triste, sempre encontro o aconchego do teu colo.

Você assiste de perto todos os meus sonhos, e deve rir-se de mim quando sonho bobagens, ou coisas absurdas e deliciosas como os sonhos de criança.

A você, meu Amigo, eu tenho uma imensa gratidão, porém, sei que não costumo te dizer o que representa pra mim. Mas quando nos abraçarmos, repara bem na batida do meu coração e sentirá que não é um “tum-tum” ritmado. Não. É um “tum-tum” louco, acelerado, que só fica assim quando estou próximo daqueles que amo. Portanto, caro Amigo, sinta-se amado por mim.

Talvez, eu não diga isso com freqüência, mas saiba que é verdadeiro: Você é muito importante pra mim, caro Amigo travesseiro!

quinta-feira, 13 de junho de 2013

A CHUVA


Lá fora chove.
E aqui dentro, eu choro.
A chuva lava a janela do meu quarto.
As lágrimas lavam a janela da minh'alma.

A chuva me acompanha em meu choro.
Eu choro. Ela chove
O céu chora um choro cristalino.
Meus olhos chovem uma chuva amargurada.
Lá fora é choro.
E eu... Sou chuva.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

DR

- Diz pra mim um defeito meu.
- Hã?!
- Me diz um defeito que eu tenho.
- Ah, ‘cê não tem.
- Claro que tenho! Me diz, vai. Só um.
- Mas meu amor, eu não vejo nenhum defeito em você.
- Oww... Por favor, me diz. Como seria a namorada perfeita pra você?
- Amor, você É perfeita pra mim. Agora vamos prestar atenção, pois já vai começar o segundo tempo.
- Mas eu tenho defeitos, ora!
- Eu não acho.
- Tenho sim!
- Ah, então não precisa que eu lhe fale.
- Claro que precisa! Afinal, eu preciso saber o que, em mim, incomoda você.
- ‘Cê tem cada uma...
- Sinceridade e transformação são essenciais para um relacionamento duradouro. Me diz só um. Unzinho.
- Não. Não vou comprar briga com você.
- Mas não vamos brigar. Isso chama-se exercitar a sinceridade e aceitação de seus próprios defeitos através de um diálogo claro.
- Não vou falar nada. Não quero brigar nem magoar você. E o jogo já começou.
- Por favor! A gente precisa conversar, sabia?
- Sim, claro. Mas podemos fazer isso depois do jogo.
- Amor... Por favor! Como deve ser a mulher ideal pra você?
- Ok! A mulher ideal pra mim tem que ser muda.
- ...

CAMINHADA

- Vamos continuar?
- Não sei. Às vezes, eu penso em parar.
- Não. Não. Essa é a última coisa que devemos fazer. Parar, só quando chegar a hora.
- E se já for a hora?
- Quem disse que é?
- E quem disse que não?
- Bom, eu vou continuar. E se eu fosse você, faria o mesmo.
- Não sei...
- Vamos lá. Temos que seguir em frente... Vamos fugir da Morte!
- Mas ela não corre atrás da gente. Pelo contrário, ela fica lá na frente, só esperando. Pacientemente. E, quando chegamos – ZUM! –, já era.
- Poxa, você REALMENTE quer ficar, hein?
- É. Já não vejo tantos motivos pra continuar.
- Então, nos despedimos aqui. Tchau!
- ... Ei... Me espera, eu vou.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

PRIMEIROS PASSOS

Ele se apoia na parede e, lentamente, se põe de pé.
Fica na mesma posição por alguns segundos. Talvez, acostumando os pés e as pernas a essa nova posição [a que ele ficará grande parte da sua vida]. Arrisca o primeiro passo. Devagar.
Primeiro passo vencido. Segundo passo. Terá que se afastar da parede e parece ponderar isso. Pé ante pé, ele consegue dar seus primeiros passos. Ops! Caiu!
Olha para os lados, um pouco desconcertado, mas como não tem ninguém por perto olhando, não adianta chorar. Então, é levantar novamente.
Observa seus pés, como que querendo entendê-los. Tenta, a sua maneira, dialogar com eles. Quer ter a certeza que lhes sustentarão [mal sabe ele que, será dependente de seus pés a partir do momento que conquistar os primeiros passos]. Os pés – também a sua maneira – indicam que estão com ele para o que der e vier.
Procura o apoio mais próximo para se reerguer. Os pés protestam, dizem que ele já não precisa disso. Basta querer levantar, afinal, é pra isso que eles servem. Com algum esforço, se levanta.
Um pé à frente, depois outro, outro e mais outro. A excitação é inevitável! Olha para baixo, e se mostram satisfeitos, sabem que o estão impressionando. É um feito fantástico se locomover nesta nova posição: Em pé!
Sem muito jeito, olha para o lado e vê seus brinquedos. Devagar, muda de direção [é realmente fantástico poder ir para aonde quiser!]. Pé ante pé vai até os brinquedos. Porém, percebeu que os brinquedos estavam muito próximos.
Não, ele sente que, com sua curiosidade – e seus pés –, pode explorar outros lugares. Pode ir mais longe.
Pronto, foi selado um pacto entre eles.

Ele irá conhecer a casa e, em breve, o mundo. Pé ante pé.

domingo, 2 de junho de 2013

TODOS QUEREM DIZER/OUVIR "EU TE AMO!"

Ele chegou preocupado em sua casa. Não sabe bem ao certo por que falou aquela maldita frase justamente naquele momento. Queria encontrar uma explicação para aquilo, mas não chegava a nenhum argumento plausível. Agora que falou, sabia que iria ter que aguentar as conseqüências.

Em mais de quinze anos de vida sexual ativa, aquela foi a primeira vez que disse “eu te amo!” durante o sexo.

Na verdade, tudo não passou de um impulso. Quando estava próximo ao orgasmo, sentiu uma vontade incontrolável de dizer algo, então, resolver dizer “eu te amo!”. Mas ele sabia que foi um erro terrível, pois esse tinha sido o segundo encontro deles, e a primeira vez que foram para a cama. Com certeza, no dia seguinte ela iria ligar para ele querendo saber por que ainda não tinha ligado para ela. E pior, usando aquela vozinha dengosa de gente apaixonada. E pior ainda, chamando-o de “mô”! Não, não. Ele não poderia entrar numa dessas, e já sabia o que deveria fazer: Iria deixar o celular desligado por, pelo menos, três dias. Assim, ela iria se cansar de tentar falar com ele. Pronto, resolveu o problema! Sorte ele ser um cara tão esperto.

Se sentiu mais calmo e o sono logo veio.

Enquanto isso, ela, em seu apartamento, apagava o nome dele do seu celular.

- Um homem que diz “eu te amo!” pra uma mulher, na primeira vez que vai pra cama com ela, só pode ser louco! Acho que vou mudar o número do meu celular...

sábado, 1 de junho de 2013

O HOMEM INVISÍVEL

Ele sai de casa às quatro e meia da manhã todos os dias. Uma hora depois, chega ao seu destino. Veste a sua farda, depois toma um cafezinho para espantar o frio e a fome [como sai muito cedo, não dá tempo de tomar o café da manhã em casa]. Inicia sua jornada de trabalho na portaria, às seis.

Os moradores do prédio começam a sair de seus apartamentos por volta das sete ou sete e meia. Com o seu habitual sorriso, deseja "bom dia!" a todos que passam em seus luxuosos carros, mas somente os que estão com os vidros abaixados podem ouvir, e ainda sim, não respondem. Ele não se importa, pois sabe que está fazendo a sua parte, e no dia que parar de desejar "bom dia!", será chamado à atenção pelo síndico.

Os outros companheiros de trabalho o acham um tolo, por continuar a falar com essas pessoas que nunca respondem, mas ele insiste dizendo que está fazendo a sua parte.

Carro após carro vai passando pela portaria.

- Bom dia, Dr. Orlando! – diz e acena discretamente.

O Dr. Orlando continua olhando para frente, não responde e mantém as mãos fixas no volante.
“Ele é um advogado muito ocupado, não tem tempo pra prestar atenção em outras coisas. Talvez, não respondeu por isso.” Pensa.

- Bom dia, dona Carla!

A dona Carla não responde e nem olha para ele. Grita com seus filhos que estão fazendo bagunça dentro do carro, e segue em frente.
“Essas crianças não deixam ninguém conversar.” Justifica para si.

- Bom dia, Roberta!

Mas a empregada do 1982 passa pela porta e não lhe dá a menor atenção. E ele fica tentando descobrir o que é que deixa as pessoas assim, pois quase todos os funcionários tendem a agir como seus patrões.

- Tenha um bom dia, dona Silvia! – fala alto e acena, pois dona Silvia está com os vidros fechados.
- Deixa de ser besta, homem! Esse povo nem repara em você. É como se você fosse invisível. – adverte o jardineiro que o observava falar com todos que passaram por lá.
- Não. Nada melhor que desejar “bom dia!”. Eles podem até não saber, mas isso realmente melhora o dia deles.
- Sei. Pois, boa sorte, Homem Invisível! – debochou o jardineiro.

E todos os dias em seu trabalho são iguais, deseja os seus “bom dia!” e mesmo sem obter resposta, mantém o sorriso no rosto.


“Ótimo dia trabalho pro senhor, seu Carlos!”; “Boa aula, professor!”; “Até mais e um bom dia, seu Pedro!”; “Boa aula, crianças!”; “Bom dia, Dra. Rita!”; e todos passam sem responder, acenar ou sequer olhar para ele.

Dia após dia a mesma coisa, e os outros funcionários do prédio chamando-o de Homem Invisível, porém, nada disso o incomoda.
Um dia, terminara o seu horário de trabalho e ele se preparava para ir embora, quando, passando pela portaria, cruzou com uma moradora e sua filhinha, desejou-lhes boa noite e seguiu.

- Boa noite, João! – respondeu a menina, sorrindo e acenando para ele.

João parou, olhou mais um pouco para aquela criança e foi embora para casa mais feliz que o habitual. E as pessoas que o viam na rua, ficavam curiosas por ver que aquele homem sorria sem um motivo aparente. E ao perceber que todos olhavam para ele, João sorriu mais ainda e disse:

- Não, eu não sou invisível!

DIÁLOGO

O “tic-tac” do relógio ‘tá começando a incomodar. A comida ‘tá gostosa, mas não sei por que tinha que ser desse jeito. Ela poderia muito bem deixar um prato feito pra mim e pronto. Nada de jantar a luz de velas. Caráca, essas velas ‘tão me sufocando!

Nossa! Nós estamos apenas comendo e não conversamos nada. Será se ele reparou que eu cortei meu cabelo? Talvez eu puxe assunto... Mas falar o quê? Do meu cabelo que ele não reparou? Está com um olhar tão perdido...

Não sei por que ela insiste em tentar salvar nosso casamento. Não tem mais o que salvar. Argh! O cheiro dessa vela me sufoca.

Ele é tão bonito! Será se tem alguma mulher interessada nele? Ou pior, será se ele está interessado em alguma mulher? Nós ainda somos jovens, não precisamos terminar assim. Até parece que nós nunca nos amamos.

Não sei por que eu ainda participo dessas coisas. A gente não tem mais nada a ver um com o outro. Eu preciso sair dessa casa, preciso começar uma vida nova. Tenho que mudar isso, senão, vamos continuar na mesma: dois estranhos sentados à mesa.

Eu sou uma boba mesmo, ele abre a boca somente para comer. Já deve estar cansado disso tudo.

Eu deveria elogiar a comida. Sei que ela se esforça, mas não é por má vontade, apenas não dá mais ficar nisso.

Hum. E se eu tivesse pintado de vermelho, será se ele iria notar? Com certeza, não. Ele não me nota, sou praticamente uma estranha para ele.

Ela ainda é bonita. Ah, mas não faz tanto tempo assim que a gente ‘tá casado. Nossa, nem lembro mais como é o sorriso dela! A gente já não passa muito tempo junto. Talvez eu devesse conversar mais com ela.

Acho que vou pedir o divórcio. Não adianta ficar com uma pessoa que não dá a mínima para você. Faço de tudo para manter nosso casamento, mas ele nem percebe.

Tanta coisa que tenho para dizer pra ela, mas sempre fico calado. Sei que sou o culpado por a gente estar assim. Ah, como eu queria ser mais claro com os meus sentimentos. Pensando bem, não quero ir embora, afinal, eu ainda gosto dela.

A quem eu estou querendo enganar? Eu não consigo ir embora. Ele é que deveria ir embora. Tanta coisa que não foi dita entre nós. Vamos terminar assim. Ele não me diz o que está pensando e nem eu digo para ele o que tudo isso me causa.

Ela é linda! É inteligente, e sempre tem algo divertido pra dizer. Se bem que, nunca mais rimos juntos. Nunca mais fizemos um monte de coisas juntos. Não posso perder uma mulher assim.

Acho que seria melhor se nós conversássemos sobre tudo isso, talvez, as coisas mudassem. Mas homem nunca gosta de conversar sobre a relação, e ele então, nunca conversa sobre nada.

Tenho que conversar com ela e dizer o que sinto. Não posso perdê-la só porque sou um babaca que não consegue deixar as coisas claras. Ai, mas é difícil. Mas tenho que dizer algo!

- O jantar ‘tava bom.
- ‘Brigada.
- É... Eu já vou deitar. Boa noite.
- Boa.

PADRÕES

E ele disse:

"Não! Eu não vou seguir padrões!"

COTIDIANO

Ora, eu não tenho mais idade para essas coisas! Mas ele insiste!

Sei que ainda sou bonita, mas não sou nenhuma moçoila para ficar nesse tipo de situação.

Todos os dias ele passa aqui na calçada, tosse alto, cumprimenta alguém do outro lado da rua e para ao lado da minha janela. A da sala, pois a janela do meu quarto dá para o quintal. E eu não lhe daria tanta liberdade assim se minha janela do quarto fosse de frente para rua.

Fica lá parado até eu aparecer para mandar-lhe sair. Deseja-me “bom dia!” com um sorriso cheiro de dentes – provavelmente falsos – fingindo que não me ouviu e que não percebe meu mau humor. Não respondo. Sorri mais uma vez e diz: “Bom dia, Dona Aurora! Como sempre a senhora continua jovem!”. Minha vez de fingir que não escuto, afinal, não posso dar liberdade.

Ele puxa conversa falando sobre a carestia das coisas, e eu apenas lhe respondo:

- Apesar de minha aposentadoria ser pouca, não sou uma mulher de luxo, e o que ganho ainda dá para comprar minha comida e meus remédios.

Ele solta um galanteio dizendo que, com certeza, jovem como sou, não preciso de remédios. Abusado. Mal sabe esse sujeitinho que se não fossem meus remédios, já teria morrido de tanta dor nas costas.

Fica por lá mais um instante e depois se despede dizendo que vai visitar outros amigos. Sei... Com certeza deve ir para alguma casa de favores. Um velho daqueles! Deveria se envergonhar, isso sim!


À noite ele passa de volta. No exato momento que estou sentada na calçada. Pára, e sem a menor cerimônia, puxa uma cadeira e se senta. Abusado.

Já pensei em não mais sentar na calçada, se ainda o faço é por consideração às minhas comadres que gostam da minha companhia.

Continuo sentada, mas tento ignorar ao máximo a presença irritante desse velho. Porém, abusado do jeito que é, fica falando comigo o tempo todo. Com aquele sorriso frouxo, fica questionando como é que eu consigo morar sozinha em uma casa tão grande. Respondo que, se Nosso Senhor levou meu marido e nunca me deu filhos, é porque quer que eu more sozinha mesmo. Aí ele diz todo se insinuando: “Ah, mas a senhora deveria, pelo menos, alugar um de seus quartos. Assim não ficaria só, o que é bom para a sua segurança, e ainda ganharia alguns mil-réis”.

As comadres percebendo que essa conversa sempre me aborrece, vão logo se levantando, desejam-me “boa noite!” e vão para as suas casas. Ele – como sempre – se oferece para guardar as cadeiras. Digo que não precisa, mas mesmo assim, ele as guarda só para entrar na minha casa. Como quem nada quer, comenta que a noite está fria e que só um cafezinho mesmo para espantar o frio. Ofereço-lhe café [só por educação] e ele vai logo sentando no sofá. Abusado.

Comenta mais uma vez que eu deveria alugar um quarto. “Eu mesmo, por exemplo, pagaria por um, afinal, há tempos que penso em sair daquele quartinho alugado lá da Rua dos Remédios”, fala todo pomposo.

Mal termina seu café e eu já pego logo a xícara da sua mão, abro a porta da rua e lhe dou “boa noite!”.

“Não quero tomar o tempo da senhora mais que já tomei. Mas pense sobre o aluguel do quarto. Passar bem!”, diz querendo parecer um cavalheiro. Sorrio-lhe só por educação.

Ele sai. Eu vou para o meu quarto.

Deito-me e me pego desejando que o dia seguinte venha logo, e eu possa vê-lo fazer tudo de novo.

VIM-ME EMBORA DE PASÁRGADA

Vim-me embora de Pasárgada
Lá não adianta ser amigo do Rei
Nem mesmo com a mulher que eu quis
Na cama que escolhi

Vim-me embora de Pasárgada

Vim-me embora de Pasárgada
Lá também eu não era feliz
Lá a existência é uma loucura
De tal modo intransigente
Que Joana a Louca de Espanha

Rainha, porém, não tão demente
Nunca foi contraparente
Da nora que nunca tive

Era impossível fazer ginástica
E andar de bicicleta
Caí montando burro brabo
E escorreguei do pau-de-sebo
Quase me afoguei no mar!
E depois de tudo, já muito cansado
Deitei na beira do rio
Chamando Mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar

Vim-me embora de Pasárgada
Em Pasárgada falta tudo
Nem parece uma civilização
Sem um processo seguro
De impedir concepção
Telefones são quebrados
Ah, alcalóide tem sim, à vontade!
Prostitutas bonitas também tem
Para a gente... err... namorar

E é claro que fiquei triste
E triste de não ter jeito
E à noite me deu
Vontade de me matar
— Lá não adianta ser amigo do rei —

Nem mesmo com a mulher que eu quis
Na cama que escolhi

Vim-me embora de Pasárgada.


[da série "Desconstruindo Grandes Poemas". A partir do poema "Vou-me Embora Pra Pasárgada" de Manoel Bandeira]

LEMBRANÇAS DE UMA NOITE INFINITA

Estavam os dois deitados no chão contemplando o céu.
Com uma mão faziam carinho um no outro. Com a outra mão espantavam os mosquitos.

- Aqui 'tá cheio de muriçoca.
- Nome bonito...
- O quê?
- Muriçoca. É um nome bonito.
- Hum.
- Mu-ri-ço-ca. Lembra: pa-ço-ca.

Ele virou-se para ela e olhou firme em seus olhos. Olhos que refletiam a luz da lua. Refletiam também uma doçura, inocência e ingenuidade que faziam parecer pueril aquele comentário bobo.
Os dois riram.
Sentiu que estava sendo invadido por um amor tão profundo e intenso que atravessaria os tempos. Então, apertou com força a mão dela.

EU SÓ QUERO QUE

Alô. Hã? Nossa, você?! Não. É qu'eu 'tava justamente pensando em te ligar. Ah, sabe como é... Hum. Sei lá. Acho que é solidão. Apesar de não me preocupar com isso, mas tem dia que. Sabe como é...
Não, não se trata de sexo. Ou melhor, não é só sexo. Claro qu'eu quero fazer sexo. Mas eu quero mais. E tem dia que. E esse "mais"? É, eu quero com você. Tudo com você sempre é melhor. 'Tá, nunca consegui evitar ser meloso. Mas você gostava . Eu lembro. Engraçado... Falar em "lembrar" dá a impressão que esqueceu e um dia PÁ!, veio. Acho que o correto deve ser "eu penso". Assim fica a ideia de algo constante.
O "mais" qu'eu quero? Ah, sim, já 'tava divagando. Você se divertia quando eu divagava. Tem razão, isso era antes.
No fim das contas, o que aconteceu com a gente, hein? O que restou?
Ah, claro, o "mais". Claro! Bom, acho que muito mais do que sexo, eu quero a tua alma. Isso! Tua alma!
Como assim 'tou falando parecido com o diabo?!
O qu'eu quero dizer é que quero fazer amor com a tua alma.
Eu não tenho alma?!
Não diz isso! Claro que tenho. Sabe como é... Eu só, às vezes, sou meio que.
Sabe o qu'eu penso? Que você nunca foi minha. 'Tou certo, né?
Preciso de ti.
Eu sei, eu sei. Eu lembro muito bem que naquele dia disse que não precisava de ninguém pra ser feliz e bati a porta. E realmente não preciso. É só que.
Olha, só preciso de ti e pronto. Não precisamos filosofar ou discutir o sexo dos anjos e.
Não, eu não só falo em sexo, p#rra!
Ok, ok, me desculpa, por favor. Sim, eu sempre sou estúpido. Mas tenta se colocar no meu lugar, poxa. Eu só quero que.
Mas você deve 'tá sentindo falta também, afinal, foi você quem ligou.
Hã?! Você o quê?! E pra que diabos você me ligou pra dizer isso?! Como assim é melhor saber pela sua boca do que pela boca dos outros?! Pois eu preferia saber pela boca do demônio!!! Uma notícia dessas nunca vai deixar de ser ruim, caramba!!
Não! Eu não sei como é!
Hein? Desligar? 'Tá. Tchau. Hã? Ah, certo, adeus...

Tudo o qu'eu queria era que.

ENCONTRO

O "olá!" é dito sem o entusiasmo de outrora. Não parece haver interesse nas perguntas. Tudo é mecânico... "Como vai?"; "E o trabalho?"; "'Tá tudo bem?"... Apenas cumprindo uma formalidade.
Por fim, a conversa se resume ao valor do cartão de crédito que deverá ser pago até o final do mês.
E o "tchau" é falado com alívio...

VAZIO

Ele não entende por que as pessoas sofrem tanto por amor! No seu caso, por exemplo, sempre resolveu isso bem. Afinal, soube preencher sua vida com muitos vazios.
Noites insones em festas barulhentas, regadas a beijos insípidos de mulheres sem rostos. Gozos efêmeros entre coxas insossas.
Ergue a taça cheia, brinda à solidão, e traga toda a amargura contida naquele líquido que desce rasgando a garganta. Diz que tem gosto de vida e dá uma cusparada.
Logo mais o estômago protesta fazendo-o regurgitar pedaços daquela que o completava. Agora é um meio-homem. O sobejo no canto da boca é tratado com mais atenção que sua inabilidade de manter um relacionamento.
E num lampejo de meio-sobriedade, vê, sente, sabe, que o buraco em seu peito está mais largo, mais fundo e mais dolorido...

CÂNCER

Corrói o meu peito. Dói. Queima.

[Penso que é um câncer]

Minhas mãos tremem e suam.
A vista embaça.
As pernas fraquejam e me apóio na parede para não cair.

[Sinto que é um câncer]

E dentro de mim há uma explosão.
Me inclino.
Abro a boca e jorra quente: "Sim, eu estou com ciúmes!"

[É um câncer]

PALAVRAS

Antes, escrevia palavras de amor.
Hoje, escrevo palavras de dor.
Amanhã, escreverei apenas palavras.

GÊNESIS

No Princípio era o Verbo.
Depois fez-se a LUZ.
Aí alguém gritou:
"CÂMERA! AÇÃO!"

BEIJO

No final das contas, um beijo sem Amor só tem gosto de saliva.

ANIVERSÁRIO

Vai-te embora, Dia que insiste em não acabar.
O que ainda fazes aqui?
Sabes que não és bem-vindo.
Pois trazes em tua boca o gosto do passado.
E como um Judas sádico, beija-me
Fazendo lembrar-me daquela que amei
E que a Foice arrancou-a dos braços meus.
Tuas vinte e quatro badaladas ecoam em minh'alma vazia.
Dói.
Vai-te embora, Dia cruel.
Por que insistes em não acabar?

AMOR ADOLESCENTE

- Vontade de viver um amor adolescente...
- Mas você já tem trinta anos.
- Não disse que quero ser adolescente. Disse que quero viver um amor adolescente.
- Ah, quer namorar uma adolescente? Isso é pedofilia.
- Não quero namorar uma adolescente, seu chato!! Disse que quero viver um amor adolescente!!! Sabe, aquele lance de amar desordenadamente, achar que aquele amor será pra sempre e o mais importante de todos!! Essas coisas...
- Hum. Então, quer pensar e agir feito um idiota. É isso?
- Você ‘tá impossível hoje.

THE ONE

- Às vezes, fico me perguntando como será quando eu arranjar outra namorada...
- Que é que tem?
- Como é que vou arranjar outra se não consigo esquecê-la.
- Esquecer quem?!
- “Ela”.
- Que “Ela”?
- A “The One”!
- “A” “’The’ One”?
- ‘Cê entendeu. Não faz graça...
- Não existe “The One”, velho.
- Claro que existe!
- Não, não existe.
- E existe o quê?
- Um amálgama de todas as ex-namoradas.
- Hum... E a Patrícia?
- Não fala na Patrícia, p#rra!!
- Ainda dói?
- Dói!
- Pensei que ‘cê tinha dito que não existe “The One”.
- Sempre existe. Sempre.

OS OLHOS MAIS TRISTES DO MUNDO

- Você é feliz? – perguntou assim, à queima roupa.
A pessoa que levou o tiro-pergunta, que por sinal, não o conhecia – só estava sentada ao seu lado por mera casualidade da vida –, olhou para ele, para ter certeza s’ele falava com ela ou se falava sozinho.
Aproveitando qu’ela olhava pra ele, repetiu a pergunta:
- Você... É feliz?
Ficaram por um tempo se olhando. Um tempo dilatado. Que se estendia além do habitual.
A pessoa percebeu qu’ele tinha os olhos mais tristes do mundo. Depois se perguntou como saberia disso já que não conhece todas as pessoas do mundo. Mas numa súbita convicção, disse a si mesma que, se conhecesse todas as pessoas do mundo, com certeza, ele teria os olhos mais tristes de todas.
- Não sei. – respondeu cheia de hesitações.
- Eu não sou. – disse. - Você é feliz? – perguntou mais uma vez, ignorando a resposta anterior.
- Já disse, não sei. Acho que não é uma coisa constante. Tem dia que ‘cê ‘tá, e dia que não. Não dá pra ser o tempo todo. Eu acho.
- Eu não sou. – repetiu.
- E o que é que te faz infeliz? – perguntou e se surpreendeu consigo, pois detestava conversar com estranhos.
- Eu não sou infeliz.
- Mas você disse que--
- Disse que não era feliz. - interrompeu.
- E...?
- Não sou infeliz. Apenas me falta felicidade. Vejo casais de mãos dadas; crianças correndo atrás de borboletas ou de outro bicho qualquer; homens de negócios dentro de seus carros importados indo, às pressas, para alguma reunião; cachorros roendo ossos; religiosos indo para seus templos... Todos, ao seu jeito, dentro do que anseiam, sentindo-se felizes.
Ficou em silêncio por um tempo, depois continuou:
- Eu, não.
Os olhos mais tristes do mundo brilharam, mas não pareciam que iriam chorar. A pessoa teve medo que isso acontecesse, pois não saberia como deveria reagir.
Pensou que, se falasse uma frase de efeito, talvez, pudesse ajuda-lo. A frase não veio.
Continuaram em silêncio.

SIMPÁTICO

Sentado, ele olhava a paisagem pela janela do ônibus. Usava fones nos ouvidos.
Uma mulher que estava sentada ao seu lado, o cutucou e disse:
- Eu não ‘tou conseguindo ouvir.
Ele olhou para ela, fez um gesto para indicar que não tinha entendido.
Ela o cutuca novamente e repete:
- Eu não ‘tou conseguindo ouvir.
Tirou os fones dos ouvidos.
- O que a senhora disse?
- Que não ‘tou conseguindo ouvir.
- O quê?
- O que ‘cê ‘tá ouvindo.
- Isso deve ser porque os fones estão nos meus ouvidos, não? – ironizou.
- Sim, claro. Mas mesmo assim, sempre dá pra ouvir um pouquinho. Eu gosto de saber o que as pessoas ouvem.
- Ah. – disse sem mostrar nenhum interesse. - Acontece que a senhora não ‘tá conseguindo ouvir porque eu não ‘tou ouvindo nada. Na verdade, eu detesto música! ‘Tou apenas com os fones.
- E por que faz isso? – perguntou curiosa.
- Para evitar que as pessoas puxem conversa comigo. Odeio falar com desconhecidos. Não tenho paciência e nem gosto de parecer simpático.
Ela deu um sorriso forçado. Olhou à sua volta, viu um lugar vazio e foi sentar lá.
Ele colocou novamente os fones nos ouvidos e continuou a observar a paisagem pela janela. Em silêncio.

O ENDEREÇO DOS SONHOS

Finalmente o avião aterrissa! Foi uma viagem longa e cansativa.
No aeroporto pego um táxi.
Encosto a cabeça no apoio do banco, digo o endereço ao taxista e perco-me em meus pensamentos... Penso nela, em nossos dias felizes – e nos tristes também –, em todas as promessas que fizemos um ao outro. Em tudo o que a gente poderia ter sido, mas não deu. Ela não quis ou eu não quis.
Olho pela janela do carro e aquilo tudo me parece tão longe da realidade. Da minha realidade.
Vejo pedestres, vendedores ambulantes, bichos, todos disputando um pedaço da calçada. Uma eterna briga por seu território.
Pergunto-me se eles são felizes...
E eu, sou feliz?
Sou tirado dos meus pensamentos quando o carro para. Então, percebo que estou em frente a casa dela. Dei o endereço errado ao taxista. Ele está olhando pra mim, diz quanto custou a corrida e estende a mão para receber o dinheiro.
Digo que me enganei. Que aquele não é meu endereço – nunca foi meu endereço! Talvez, em meus sonhos – e desta vez falo o correto.
Ele dá partida e o carro sai. Penso em olhar para trás, mas me contenho. Porém, antes do carro entrar na rua seguinte, olho para trás.
Nunca deixei de olhar para trás.

O QUE DIZER?

Junto com o gozo, veio – meio desgovernado – um “Eu te amo!”. Até ele se surpreendeu por falar isso!
Silêncio.
Depois, ela começou a mover os lábios. Ainda não sabia ao certo o que ia responder.
Um barulho na fechadura. Passos. Os pais dela chegando.
Rápido tiveram que se vestir e fazer parecer que nada faziam.

Ela nunca se sentiu tão feliz por seus pais aparecerem!

VIDA DE CINEMA

CENA UM:
Bar lotado. Ele se aproxima d’Ela e oferece-lhe uma bebida. Ela aceita. Os dois bebem e riem bastante.
CENA DOIS:
Ele está sobre ela. O lençol cobre seus corpos. Transam devagar. Ao fundo, vemos através da janela a chuva cair.
CENA TRÊS:
Ele e Ela, diante do padre, dizem “Sim, eu aceito!”.
CENA QUATRO:
Ele e Ela, diante do juiz, dizem “Sim, eu quero me separar!”.

EU TE AM-- #gasp-gasp#

- Prometi a mim mesmo que não digo mais “eu te amo!” pra mulher nenhuma.
- Mas... E se aparecer a mulher da sua vida?
- Ela vai ter que conviver com isso. Ou melhor, sem isso.
- E se aparecer aquela vontade incontrolável de falar isso pra ela?
- Seguro na boca, engasgo, e engulo.
- Não acha qu'é um pouco cruel?
- Ela se acostuma.
- ‘Tou falando qu’é cruel com você mesmo.
- Nada. Eu me acostumo.